cigarrada

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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Hoje tudo o que queria era uma madrinha. A enviar -me postais com pombos, laços, flores, baloiços e ervas verdes rasteiras. Essa sensação de adopção ainda que convencionada, um olho dilatado a intrometer-se nos assuntos da família, pois há que zelar pela menina e "Deus Nosso Senhor agradece ".
Nem precisava de ser rústica, atarracadinha e levitar como as que me perfilharam conheci. Podia ter só ouvidos toda ela.
Venha com pomadinhas para a tosse, o ranho e o almareio. Faça-me para seu alívio um mealheirinho, um enxoval com faqueiros e moulinexes, alguns naperons pode ser.
A madrinha está para as ligações de parentesco muito subalternizada. Não importa que eu não as entenda por não terem laços de consanguinidade, um pai e uma mãe a que poderia eventualmente ligar a alguém.
Deus Nosso Senhor agradece e como eu o compreendo. Uma madrinha mantém-no ocupado com as suas preces e a gente tá protegido que os tempos não se compadecem com enjeitados.
Tanto frio lá fora, tanto mainante, tanta bandidagem, Jesus!
A minha liberdade por uma madrinha aos olhos da qual serei sempre uma menina. Durava um dia, mas eu arriscava.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Umas calças de algodão, blusão de ganga, boné e um telemóvel topo de gama. Raízes pretas e carrapito loiro. A tez escura, marcada e mate. Unhas de verniz descascado do fairy limão. Seria útil descrever os sapatos que são sempre uma forma de ajudar a caracterizar pessoas, determinar estatutos e enquadrar classes sociais. Não alcanço isso nem as cáries nem cairia, aliás, nesse truque fácil e, já agora acrescente-se, as mesas revelam consumo de cerveja e cafés. Melhor me falam os cinzeiros que asseguram a fraqueza: o vício, essa renda.
Reparo que há mais brincos neles que nelas, argolas douradas.
São também de uma geração que não usa relógio, que tem filhos cedo, que vive com os avós e que, como tem a casa demasiado cheia, faz do café o espaço de socialização por excelência. Lugar onde, apesar do fumo e da televisão, ou por causa deles, se sentem e sentam distendidos.
Um lugar público que traz confidencialidade às conversas, que faz esquecer os graus de parentesco, que anula responsabilidades e onde é experimentado o sentimento de pertença a um grupo que não o familiar, que não o escolar que já se perdeu, que não o profissional pois que não chegou a existir.
Não são as vestes que nos identificam, na verdade, pois o fenómeno não escolhe classes ou fronteiras. Também não é a forma como se fala ou o que se diz.
É a relação que estas pessoas estabelecem com o tempo o que as coloca entre pares e as situa numa esfera íntima, já que simplesmente o desconsideram.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Hoje sinto-me triste.
Estou mesmo angustiada. Sinto revolta e amargura.
Os portugueses estão mais pobres, soube agora (http://bit.ly/1DfGgu0).
As crianças e as mulheres são as mais afectadas. Apesar de óbvio, continua surpreendente. Do conjunto, os desempregados são os mais afectados.
Sinto tristeza.
Não sei se me entendem.
Faço-me mesmo entender? Ao ponto de sentirem esta dor, esta moinha? Este aperto no peito e as mãos presas, todas atadas?
Esta culpa?
Este desconforto?
Nenhuma das nossas inquietações importa perante isto! Nenhuma das conversas faz sentido. Nenhum encontro merece ser marcado. Nenhuma queixa é razoável. Não podemos comemorar. Não devemos ir aos saldos nem pensar no dia dos namorados ou sequer no carnaval. Nada mais nos deve ocupar.
Paremos todos, então. Não para desatar a fazer protestos, contestações, marchas, peditórios e comentários.
Paremos para sentir.
Sentir um só par de sapatos, roupas dadas, cinquenta cêntimos no bolso, impossibilidade de partilhar refeições com um amigo, às vezes, até um café.
Parar para sentir: privação.
Como se faz isso?
Primeiro é bom que saibas...é devagarinho. Mansamente como o fazem os cabrões.
Atingem-se os velhos que pouca voz já têm: reformas, pensões tudo a baixar. Os pais com menor capacidade de ajuda. Os avós menos solidários, mas, ainda assim, garantes dos laços existentes. Ele a fingir que já está farto do cinema. Ela a recorrer à gillete. Atingem-se os contribuintes. Ela a dizer que a carne está poluída. Os trabalhadores: menos feriados, menos dias de férias, menor valor por horas extraordinárias, mais horas de trabalho, cortes nos subsídios, carreiras congeladas. Ele a dizer que prefere ir a pé. O carro à porta, o depósito vazio.
Atingem-se as mães e os pais de família: menos abonos, menor verba a descontar no irs. Ela a substituir os donuts na lancheira por pão com manteiga.
E, depois, fruto da conjuntura...uma empresa que fecha, um orçamento que não é aprovado, um despedimento, um desempregado, outro, outro, outro. Ele a recusar sair com os amigos porque está frio.
Cortes nos subsídios a que continuam a chamar aumento da despesa.
Impossibilidade de fazer medicina de rotina. Ela com um ou outro dente careado. A menina com as sandálias gastas. O casaco com as mangas curtas. A pele amarelecida. As olheiras fundas. Laranja do chão, bananas não.
Para se ser pobre é preciso vagar. Bruteza para aguentar. Força para não fugir gritando. Calor de dentro para não procurar embriaguezes.
E sinto esta tristeza amarga.
Uma vergonha que me faz ruborescer.
Nada do que me digam me importa, pois que é fútil. Quando ponho um sobrinho meu no lugar dos outros fico, eu própria, com fome. E também a minha fome não importa, pois que é delas, as crianças, que se trata. Vazias, fracas, desprotegidas. Desorientadas.
Envergonhadas.
Nem sei por que razão ainda tenho uma gata, nem sei por que razão ainda pinto as unhas, nem sei por que razão me penteio. Tudo isto são distrações. Meras entretengas.
Também não me peçam para adoptar, apoiar uma causa ou discutir a vitória da Grécia. Há uma urgência maior que não se coaduna com o tempo vagoroso dos cabrões nem com a lentidão dos pobres. Sinta-mo-lo com dor porque dói e agora que vo-lo digo, incomodem-se no sofá, esfreguem os olhos, desatem as mãos e metam-nas nos bolsos outra vez.