cigarrada

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GABINETE CLIMATIZADO

GABINETE CLIMATIZADO é um lugar de conforto. De onde se entra e se sai sempre com certezas. Lugar onde se questiona pouco, onde se reproduz muito do que se escuta no café, nos telejornais e no correio da manhã. É um sítio onde se guardam ideias fixas e muito empirismo. Por vezes pouca tolerância, pouca flexibilidade, nenhuma solidariedade e muito senso-comum.

Todos fomos um dia colegas deste lugar. Todos os dias,aliás, encontramos lugares assim: na repartição de finanças, no consultório médico, na paragem de autocarro, no pingo doce, na esplanada, nas salas de aula, nos jornais e nos canais que deviam de ser de referência.

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Gostava de dizer ao meu sobrinho de 9 anos que fazer parte da associação de pais para discutir os problemas que surgem na sua escola é fazer política; que pertencer ao condomínio é fazer política; que ir à reunião da comissão de moradores do bairro é fazer política.

Preocuparmo-nos, envolvermo-nos, participarmos nos assuntos que nos dizem respeito são formas de cidadania activa e formas de transformar a sociedade tornando-a melhor.
Estar sindicalizado, privilegiar as redes de consumidores locais em detrimento das grandes superfícies, promover o debate sobre, por exemplo, a precariedade, organizar redes de solidariedade, associar-se ao cine-clube, são oportunidades que só a democracia nos dá.

E são também a forma de a mantermos viva.

Sucede, porém, que a sociedade portuguesa só olha bem para estes fazedores enquanto eles não são partidarizados. A partir do momento que escolhem pertencer a um colectivo organizado que dispute o poder de governar a nível local, nacional ou internacional, estes transformadores ganham estatuto de segunda.

As suas ambições deixam de ser legítimas e aceitáveis como se desejar o poder fosse algo sujo e abominável.

A classe política está tão mal vista, tão desacreditada, cometeu tantos erros, prometeu tanto e cumpriu tão pouco que ser hoje militante é um risco e um luxo.
Os tachos, os favores, os escândalos cometidos pelos que elegemos envergonham-nos tanto a todos que é mais confortável criticá-los que sermos um deles. As abstenções são o resultado disso mesmo e a representatividade fica vazia de significado à medida que estes sentimentos se instituem na sociedade.

Tudo igual, todos no mesmo saco, todos uns aldrabões, todos a mesma merda, retira aos políticos a sua dimensão humana e transforma os militantes em seres a evitar.

Assim, quando é urgente reunir consensos e forças para organizar protestos contra a troika, os militantes são preteridos, criticados e afastados ainda que as suas ideias coincidam com as da maioria. Quando é necessário organizar simples manifestações de apoio ao povo grego promovem-se reuniões para esvaziar as convocatórias de todo o seu carácter político que defende a soberania do povo, do seu voto e do seu governo. E mais! Quando a sede do mesmo partido é disponibilizada para fazer pancartas, os militantes escutam imediatamente uma advertência "atenção! não comecem a puxar isto para as vossas capelinhas, participem na qualidade de cidadãos".

Um cidadão que não se admite por inteiro, já que tem de ser desprovido das suas componentes política e partidária.

Se, depois da concentração, se tenta mais tarde organizar uma reunião de balanço e de projecção do futuro próximo, há os que respondem de imediato, quando lhe solicitamos espaço para o encontro, "eu até cedia, mas os meus sócios não querem transformar aquilo numa coisa política".

A aversão é tanta que nós próprios nos escondemos e não admira que passemos por estes movimentos ditos sociais sem deles colher frutos.

A verdade é que tínhamos uma faixa com letras garrafais onde podia ler-se "Vitória na Grécia, esperança na Europa" e não a levamos para a concentração porque o seu verso tinha impresso o símbolo do Bloco.

Não creio que por detrás da agitação esteja ou tenha que estar sempre um partido e não me parece bem que se cavalguem ondas, mas também não me parece que devamos esconder-nos. Podíamos e devíamos ter levado uma faixa, um cartaz, meia dúzia de formas de nos fazermos presentes sem pretensões e sem medos, sem nos esforçarmos por sermos discretos.

Nem tudo é partidário, mas tudo é política e - se lhe explicar bem e devagar - penso que até o meu sobrinho de 9 anos o entenderá.

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“Só dou esmola se for para comer” ou, de outra maneira, “pago-lhe comida, dinheiro não dou”. A atitude pressupõe um juízo de valor sobre aquele que pede, pressupõe que não será capaz de gerir o dinheiro que lhe é confiado e, ainda, que o gastará inutilmente, leia-se em, por exemplo, cigarros e vinho. Pior que isto. só recordando quem afirma perentório: "quem não tem dinheiro não tem vícios".
António Lobo Antunes, em crónica sobre a sua infância de contexto bafiento e salazarista, conta que cada menino tinha "o seu pobrezinho" que visitava por ocasião do Natal de mãos dadas com as tias. O que lhe diziam na Igreja não combinava, então, com o que lhe era dado a ver nesses bairros de lata. Na altura, também se deixavam as camisas, as calças e os sapatos gastos, mas nunca dinheiro, sob pena, garantiam as titis, de ser desperdiçado.
Antes como agora, aos pobres é retirado o poder do livre arbítrio, é confiscada a vontade, a autodeterminação e a possibilidade da escolha.
A partir do momento em que um português perde o seu emprego e se torna beneficiário de um apoio social, fica refém não de um menino riquinho, mas de um coletivo (contribuintes e governantes enviesados) que se cuida detentor da pobreza alheia e com legitimidade para decidir sobre o futuro dos desfavorecidos.
Vários fatores contribuem para gerar este sentimento tão nosso e tão fascizóide.
1) A conceção de que o desemprego é um fracasso, logo resulta não do contexto, mas da incapacidade;
2) A ideia de que sendo desempregado é mandrião e está “à mama” dos outros e do Estado;
3) O ignorar conveniente de que um subsídio é um direito e não um previlégio;
4) A conclusão precipitada de que, se é desocupado e se ainda assim recebe dinheiro, então deve sujeitar-se a fazer "coisas" como limpar florestas e afins.
Todos são donos dos desempregados, os novos pobrezinhos do século XXI.
Daí que há quem possa dizer que não devem perder tempo no Facebook ou comer bifes, como certo dia o fez Jonet, também ela uma tia. Ou usar telemóveis e viajar para a Suíça, como há semanas uma assistente social, qual beatinha de outrora, censurou a uma beneficiária do RSI. Ou, ainda, ter simples prazeres, como neste instante e amiúde se escuta mesmo aqui ao lado, neste escritório climatizado. Sempre no seu lugar. Nunca no lugar do Outro.