cigarrada

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quarta-feira, 30 de julho de 2014

Hoje a minha macieira deu laranjas Meteram-se-me na vida várias pessoas. Rui Manuel Amaral, Gonçalo M. Tavares, Umberto Eco sempre a lembrar-me das limitações das minhas interpretações, Rui Zink, Adília Lopes, Augusto Monterosso, Paulo Condessa, Mário Henriques Leiria, outros e o Luís Ene que tem a mania de lhe beber os gins tónicos. Causaram-me alguns incómodos porque, dizem, são daquele género de gente “difícil de arrumar” em categorias. Escrevem muito, e pouco de cada vez, textos breves, sínteses, epigramas, aforismos. Chamam-lhes os tipos da microficção. Se isto é novidade ou se sempre o houve é conversa que demora e a demora não é para aqui chamada. Paulo Pires contou-nos (o conto sempre é um poucachinho mais extenso e o dele demorou três horas) que estes escritores começaram a assumir o seu minimalismo apenas e só durante a primeira metade do século XX. Disse-nos que há imensa gente a pensar sobre a história e evolução do conceito de microficção, a discutir, a estudar. “Quando acordou o dinossauro ainda estava lá”, diz o Paulo Pires, foi já tema de tese de doutoramento. Por instantes temi que o Anibaleitor comesse todos esses postulados e pusemo-nos foi a ler “o género mais promíscuo da literatura” testando os nossos deficits de imaginação. Há todo um trabalho que cabe ao leitor, o de interpretar, cruzar o que lê com outros autores, o de deslindar a ironia, o de livre associação. E o leitor não é tomado aqui como preguiçoso ou apressado ou moderno. Não é só twitero ou facebookiano ou telegráfico por ser urbano e lhe tirarem um dos bens mais preciosos, o tempo. O leitor é exigente e até lê no semáforo. Vive com o mal, o medo, a solidão, a depressão e procura fazer prevalecer o seu “arranjo pessoal” à maneira das sociologias e religiões socorrendo-se, para isso, da microficção. Houve, por isso, quem escrevesse para caixas de fósforos, para as esperas do autocarro ou da fila das finanças. Pequeno, curto, breve, rápido e que fica, marca, desconcerta. Segundo contou o Paulo Pires, há literatura desta que não chega até nós por tiragens limitadas, fracas capacidades de distribuição, inexistência do mediatismo. Importa é dizer que hoje chegou. Literatura ou preceito expresso em forma de sentença breve e que elipticamente se espremermos continuará, qual laranja, a dar sumo. Apontamento após o curso de nova literatura portuguesa - microficção ministrada por Paulo Pires no âmbito do Festival Poesia&Companhia. Faro, 8 de Março de 2014.