cigarrada

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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Os Meus Algumas palavras são tão fragmentárias que nos abrem espaços largos na memória. Lugares onde não pode caber senão aquilo e que jamais serão ocupados com outras ditas por desperdício ou distração. Quando um dia vi meu avô abrindo os braços, os lábios e os dentes, e encerrando os olhos senti-me ganhar umas certas asinhas e levantei por segundos os pés do chão. Afinal, estávamos ambos quedos e ele apenas dissera ao ver-me, sorrindo de facto, "margarida, minha flor". Também hoje mastiguei minha avó Elisa: o azeite e o vinagre numa acidez doce a que juntei sal grosso e oregãos. Um caldo translúcido resultando desta mescla e das lágrimas do tomate provocaram lembrança tal que, julgo, nunca esta digestão se fará. A puta da memória é assim mesmo, lugar cheio de espaços que ocupam tudo puxando uns pelos outros, uns pelos outros, uns pelos outros com mais força os mortos que os vivos. E não apenas palavrando. E, talvez por isso, surge-me ainda na cadeira de braços e no topo da mesa um corpo seguro, uma pele escura e quase também só o resto feito de boca que rumina, cogita, medita, tritura, pondera cerrado dentro das bochechas, deixando escapar sons difusos, uma linguagem que todos entendiam porque nos procurava os olhos. E, claro, nós não nos esquecemos, se os quisérmos recordar saberemos que não podemos colocá-los fora de nós, referirmo-nos aos avós com simples ele ou ela. Sê-lo-á sempre com a devida reverência que diremos o Pêpê, a avó Elisa, o avô Brito, a Mêmê. Assim mesmo no-lo ensinou esta.