cigarrada

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Hoje sinto-me triste.
Estou mesmo angustiada. Sinto revolta e amargura.
Os portugueses estão mais pobres, soube agora (http://bit.ly/1DfGgu0).
As crianças e as mulheres são as mais afectadas. Apesar de óbvio, continua surpreendente. Do conjunto, os desempregados são os mais afectados.
Sinto tristeza.
Não sei se me entendem.
Faço-me mesmo entender? Ao ponto de sentirem esta dor, esta moinha? Este aperto no peito e as mãos presas, todas atadas?
Esta culpa?
Este desconforto?
Nenhuma das nossas inquietações importa perante isto! Nenhuma das conversas faz sentido. Nenhum encontro merece ser marcado. Nenhuma queixa é razoável. Não podemos comemorar. Não devemos ir aos saldos nem pensar no dia dos namorados ou sequer no carnaval. Nada mais nos deve ocupar.
Paremos todos, então. Não para desatar a fazer protestos, contestações, marchas, peditórios e comentários.
Paremos para sentir.
Sentir um só par de sapatos, roupas dadas, cinquenta cêntimos no bolso, impossibilidade de partilhar refeições com um amigo, às vezes, até um café.
Parar para sentir: privação.
Como se faz isso?
Primeiro é bom que saibas...é devagarinho. Mansamente como o fazem os cabrões.
Atingem-se os velhos que pouca voz já têm: reformas, pensões tudo a baixar. Os pais com menor capacidade de ajuda. Os avós menos solidários, mas, ainda assim, garantes dos laços existentes. Ele a fingir que já está farto do cinema. Ela a recorrer à gillete. Atingem-se os contribuintes. Ela a dizer que a carne está poluída. Os trabalhadores: menos feriados, menos dias de férias, menor valor por horas extraordinárias, mais horas de trabalho, cortes nos subsídios, carreiras congeladas. Ele a dizer que prefere ir a pé. O carro à porta, o depósito vazio.
Atingem-se as mães e os pais de família: menos abonos, menor verba a descontar no irs. Ela a substituir os donuts na lancheira por pão com manteiga.
E, depois, fruto da conjuntura...uma empresa que fecha, um orçamento que não é aprovado, um despedimento, um desempregado, outro, outro, outro. Ele a recusar sair com os amigos porque está frio.
Cortes nos subsídios a que continuam a chamar aumento da despesa.
Impossibilidade de fazer medicina de rotina. Ela com um ou outro dente careado. A menina com as sandálias gastas. O casaco com as mangas curtas. A pele amarelecida. As olheiras fundas. Laranja do chão, bananas não.
Para se ser pobre é preciso vagar. Bruteza para aguentar. Força para não fugir gritando. Calor de dentro para não procurar embriaguezes.
E sinto esta tristeza amarga.
Uma vergonha que me faz ruborescer.
Nada do que me digam me importa, pois que é fútil. Quando ponho um sobrinho meu no lugar dos outros fico, eu própria, com fome. E também a minha fome não importa, pois que é delas, as crianças, que se trata. Vazias, fracas, desprotegidas. Desorientadas.
Envergonhadas.
Nem sei por que razão ainda tenho uma gata, nem sei por que razão ainda pinto as unhas, nem sei por que razão me penteio. Tudo isto são distrações. Meras entretengas.
Também não me peçam para adoptar, apoiar uma causa ou discutir a vitória da Grécia. Há uma urgência maior que não se coaduna com o tempo vagoroso dos cabrões nem com a lentidão dos pobres. Sinta-mo-lo com dor porque dói e agora que vo-lo digo, incomodem-se no sofá, esfreguem os olhos, desatem as mãos e metam-nas nos bolsos outra vez.